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Relato do Nascimento do Luã

Luã veio ao mundo causando fissuras nos sistemas médico e jurídico. Inseminação caseira, parto domiciliar e registro via setor jurídico do Cartório Civil.Assim começa a história deste pequeno grande menino, que chega abalando a nossa engessada sociedade, resistente a novas formações familiares.

"Tudo começou com o desejo de ter um filho e o prazer de encontrar a mãe de meu filho, Suany Lima, mulher extraordinária, com o coração maior do mundo, os olhos profundos e as mãos cheias de amor e carinho. Ela encampou firmemente meu desejo de ter um filho. Diante desta sorte avassaladora de poder constituir uma família, nos casamos, claro, com direito à certidão lavrada em cartório, com testemunha e tudo mais. Em seguida, começou a caça aos espermatozoides. Falamos com todos os nossos amigos, e após sete negativas, tivemos três respostas positivas. As negativas eram justificadas do seguinte modo: quero ser pai. Explicávamos que era apenas uma doação de esperma, sem nenhum vínculo de paternidade, uma ação absolutamente generosa, altruísta, humanitária. Eu, como servidora pública, professora da Universidade Federal da Bahia, e minha esposa psicóloga e mestranda em letras pela mesma universidade, assumiríamos todos os custos financeiros e desafios psicológicos da criação. Foi assim que três homens de uma humanidade indescritível se propuseram a doar, fazendo todos os exames necessários para tanto). Primeira batalha vencida. A decisão por doador conhecido se explica pela seguinte razão: o desconhecimento da origem biológica poderia gerar o infortúnio de uma busca desenfreada e incessante por tal origem, consumindo a vida de nosso filho e, consequentemente, a nossa também. É claro que doador conhecido também é problemático, mas nada se compara com este problema de ter de lidar com o desconhecimento da origem. Eu, juntamente com minha esposa, me propus a estudar o melhor momento para a inseminação: medição diária da temperatura basal, muco vaginal, e teste de fertilidade de farmácia. Ninguém nunca conheceu tão bem o meu corpo como Suany, ela esteve em cada manhã ao meu lado fazendo todas as medições para que tudo ocorresse com o mínimo de imprevistos possível. Afinal, não tínhamos esperma todo dia. Precisávamos ser precisas.


Tentamos em novembro, dezembro e fevereiro. Conseguimos na terceira e derradeira tentativa e tem mulher que passa anos tentando. Mais uma vez a sorte ao nosso lado. Fomos até em clínica de reprodução assistida que, para nossa infelicidade, estava apenas interessada nos óvulos de minha esposa, que tinha 25 anos na época. Caso eu optasse por fazer FIV – Fertilização In Vitro - com seus óvulos e ela produzisse uma boa quantidade, de modo que o laboratório pudesse vender, teríamos o desconto de 50% no procedimento, ou seja, pagaríamos apenas 7 mil ao invés de 15 mil. Desmascarado o verdadeiro interesse médico. Além disso, inculcaram o medo de nosso filho ter síndrome de down, afinal um óvulo com 38 anos tem uma chance altíssima de produzir um embrião com síndrome de down. Ledo engano, nada disso ocorreu com nosso pequeno Luã. Em pleno carnaval, dia 21 de fevereiro, bingo: Luã fora concebido. Dia 07 de fevereiro foi minha última menstruação, quando completei 38 anos de idade.



Dia 08 de março, dia internacional da mulher, teste de farmácia positivo. Segunda batalha vencida. Além da precisão quanto ao dia fértil, a concepção era precedida de muito namoro e amor entre mim e minha mulher, até eu ficar bem lubrificada e com contrações orgásticas, de modo que os espermatozoides podiam nadar melhor e atingir o óvulo. Dito e feito, Luã foi concebido com muito amor. Depois da concepção, veio a odisseia da gravidez. Meu corpo e mente mudados completamente e como repetia a minha parteira guru, Tani (Tanila Glaeser): a gestação é uma preparação para a maternagem. Dito e feito, bem casada com a minha amada Su, minha couvade, pois ela apresentava vários sintomas de gravidez, sentíamos na pele a força dessas palavras. Atravessamos de mãos dadas a gestação e eis que veio o parto. Terceira batalha vencida. Luã preparou sua chegada homeopaticamente. Mas quando veio, veio que nem rajada de vento desvirginando a madrugada, com Iansã no comando. E assim Luã me marca com o epiteto de parideira cunhado pela minha parteira. Um verdadeiro escorpiano que se demora antes do bote, mas o bote é rápido e lancinante. Luã, um escorpiano que nasce na lua nova em escorpião. E surge como um canto forte de galo fogo rompendo a manhã. Entregue de corpo e alma, eu me abro para que essa vida entrasse assim “como se fosse o sol desvirginando a madrugada. Quero sentir a dor dessa manhã nascendo, rompendo, tomando, rasgando o meu corpo. E eu chorando, sofrendo, sorrindo, adorando, gritando feito louca e criança. Eu quero meu amor se derramando. Não dá mais para segurar. Explode coração”. Eis que gonzaguiando nasce o baianinho. Grito forte. Corado. Ativo. Menino bravo. Menino delicioso. Deixando as mamães caírem no choro e no gozo de te ver à luz do dia. Menino homem veio que nem vento. Uma semana avisando com pródromos, contrações de treinamento mais intensas e irregulares. Sai o tampão quatro dias antes do parto. Eu já havia lido os livros “A Cesariana”, de Michel Odent, para definitivamente não querer fazer uma cesariana; o “Parto Ativo”, de Janet Balaska, para saber tecnicamente os benefícios de um parto ativo; “Entre as orelhas”, de Ricardo Jones, para me conscientizar que o parto é antes um fenômeno psicológico do que físico; “Parto com Amor”, de Luciana Benatti, para saber que o parto pode ser um gozo e não apenas dor. Havia lido também diversos artigos e entrevistas, visto vídeos e filmes, como o “Parto Orgástico” e “O Renascimento do Parto”. Intensa terapia cognitiva para desejar o parto domiciliar. Não convencida da força de meu desejo, Tani, minha parteira guru, me pediu mais uma prova de força de vontade. Fiz um poema, mas ainda estava no lugar seguro da razão: “Parir é se abrir simplesmente, é se entregar sem mente, é natureza sem cultura, é instinto vivo sem ruptura, é ritmo de dois corpos, é o elo mais profundo de você com o mundo, é ter prazer na dor de renascer, é você e o seu bebê, e mais nada, e mais ninguém”. Minha companheira me mostrava como eu poderia me deixar fluir nas imprevisibilidades do tempo, sem me cobrar tanta perfeição. Fiz sessões com a osteopata Lílian, o acupunturista Dimitri, a homeopata Cecília, terapia junguiana com Teresa, pilates para grávida com a doula Thaís Bandeira, joguei búzios com a Makota Valdina. Todos me asseguravam caminho aberto para um parto domiciliar. Estava preparada? Somente quando me deparei com o abismo do imprevisível, com a insegurança da vida e me reduzi à pequenez do eu diante da imensidão da vida, da vida que dá vida, menos mente e mais corpo e natureza, menos razão e mais intuição, menos controle e mais entrega. Aprendi a me entregar ou a me imaginar entregue ao mistério desafiador que é o próprio nascimento. Transformação brava para a professora de filosofia e aprendiz de poesia. Nada podia me dizer o que seria parir. A explosão da vida me diria. Sem palavras. Uma única imagem: minha gatinha parindo. Uma única força: a vida. Um único mistério: o nascimento de meu filho. Uma única lógica: deixar tudo fluir no seu tempo e ritmo. Às 18h do dia 17 de novembro, as contrações ficaram mais intensas e ritmadas. Minha guru parteira repetia seu adágio oracular: “pode ser, mas pode não ser também”. Fomos caminhar à beira mar. Vida que segue. Meu corpo já dizia: algo ocorrerá e em breve. Meu amor me olhava profundo como que dizendo com sua intuição faca que cortava o silêncio da noite e a paisagem mar: sim, chegou a hora. Sim, nosso filho virá. E estarei ao seu lado para acolher o primeiro choro de nosso filho e toda a dor que é nascer mãe. Sim, estarei ao seu lado para o desafio que é ser uma vida que dá vida, ser um amor que dá amor, ser liberdade que liberta. Definitivamente podia chamar Su de amor de minha vida. Voltamos para casa. Às 23h chega a minha querida doula, Vivi (Viviane Lafene). Depois de contabilizar as contrações, avisa a equipe que estava em fase latente animada: 3 contrações com duração em média de1 minuto a cada 10 minutos. A equipe seguiu rumo à partolândia. Chegam em casa à 1 hora da manhã. Carol Lube captava com sua câmera fotográfica os mistérios e os silêncios do parto. Vivi penetrava seus olhos profundos nos meus me chamando para vida que vinha, sem pressa e com muito amor. Respire e relaxe, eis o mantra do parto. A vida precisa respirar e se acalmar para deixar a luz vir.


Lorena sempre gentil no auxílio. Preparada para amamentação pela querida Daiana Almeida, seios cheios de vida para essa nova vida. Mami Su também com seus seios induzidos para a amamentação. Muito leite e musas para aninhar essa nova cria de Baco. Um verdadeiro parto Coaracy. Me senti uma verdadeira mãe (cy) sol (coara), leoa sob o sol. Meu amor, Su, sempre ao meu lado: coração com coração, mão com mão, olhar com olhar. Meu bálsamo. Meu porto seguro. O amor de minha vida para sempre. Mãe de meu filho. Felicidade em forma de gente. Pedaço inteiro de mim. Entrava em fase ativa, verdadeiro trabalho de parto. O desejo que o parto fosse orgástico ficou distante, virou névoa de tempos dourados. A dor era lancinante, incomparável com qualquer outra dor. Minha mente se concentrava na passagem, no desvirginamento de mãe, determinada e forte. Às 2 horas entrei no expulsivo. Imersa na piscina sentia meu menino atravessando a porta. Me abria inteira. Vontade de defecar. Prazer em defecar. Olhar estatelada de gata, respiração gutural, vindo do âmago da alma. Tudo querendo Luã. Tani me diz que ele, mesmo coroado, não estava gostando da quentura da água e que teria que sair após a próxima contração. Eu, feito leoa, saltei para fora da piscina, me aprumei de quatro e ao som de “Sabemos parir”, veio o derradeiro expulsivo: “Siente que el momento llega. Siente: tus huesos son fuertes. Siente: estamos ayudando. Lo divino está contigo. Siente: el niño está en la puerta. Vivirá para abrazarte. Siente: está em buenas manos y eres parte de la tierra. Tienes lo que necessitas, madre de todos nosotros”. Assim gozei meu último expulsivo, fora de mim, em delírio. Mami Su pega nosso filho nos braços e chora de felicidade. Corta o cordão umbilical, cumprindo seu primeiro ato de função paternal. Luã nasceu com um braço erguido para cima num verdadeiro gesto de “Fora Temer”. Eu me sento leoa e meu filho me abraça e olha por primeiro a mami tigresa Su devorando a placenta. Luã nasceu às 03h18, a placenta nasceu 15 minutos depois. Parideira, repetia minha guru Tani: 3 horas de parto e 1 hora de expulsivo. Parideira. Iansã abriu com uma rajada o caminho de Luã depois de Oxum ter me fertilizado e me presenteado com o bebê. Quarta batalha vencida. Para finalizar o colorido desta odisseia vem o puerpério embalado pelas palavras de Toquinho: um menino caminha e caminhando chega no muro, e ali logo em frente, a esperar pela gente, o futuro está. E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar, não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar. Sem pedir licença muda nossa vida, depois convida a rir ou chorar. Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá. O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar. Vamos todos numa linda passarela de uma aquarela que um dia, enfim, descolorirá. Eu e Su batalhamos bravamente para conseguir um doador, fazer a inseminação, atravessar a gestação e parir Luã. Sim, quatro batalhas vencidas pelas felinas. Quando pari Luã, eu me transformei não numa mãe apenas, mas em uma leoa e Su em uma tigresa. Faremos de tudo para protegê-lo. A quinta batalha está apenas começando. A mais linda, a mais desafiadora, a mais desejada: a criação de nosso filho. Da concepção ao nascimento e registro: Luã veio ao mundo causando fissuras nos sistemas médico e jurídico. Inseminação caseira, parto domiciliar e registro via setor jurídico do Cartório Civil (Luã foi sábio ao esperar 4 dias para nascer depois da promulgação do Provimento 63 da CNJ, no dia 14 de novembro de 2017, que versa sobre a maternidade socioafetiva). Assim começa a história deste pequeno grande menino, que chega abalando a nossa engessada sociedade, resistente a novas formações familiares. Chega trazendo nova vida porque nos permite transformar profundamente quem somos, porque traz mais amor e liberdade."


Assinado: Luã e suas duas mães, Ju e Su (Texto editado pelas autoras)

 
 
 

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